Um olhar do canto da porta, enquanto calçava as botas para a madrugada de neve lá fora. Não dormimos nada, entre um dos filmes mais tragicamente românticos no DVD interrompido por actividades um pouco mais romanticamente pragmáticas.
Mas havia em tudo um estranho desacerto, uma distância dos gestos ao coração, do passado a cortar o presente. A despedida alargava-se disso, dessa estranheza agora. Disse para mim próprio, enquanto me despedia num alemão embrulhado ainda mais pela emoção: "nunca mais nos vamos ver".
Saí pelas escadas em caracol, fechei a porta de metal esfarelada, atravessei o pátio interior onde a neve continuava a enterrar o presente, saí para a rua inteira. "Hauptstrasse", rua principal. A madrugada já cheirava a fritos e a borracha queimada, quando entrei no metro depois de me perder várias vezes pela rua alta demais para a minha dor.Aquele olhar triste doeu-me durante muitos anos. O olhar não: a distância entre querer e ser capaz.
Nunca mais nos vamos ver: eu e aquele olhar. Quero ruas altas, longas, mas não essa: sou o que desejo e o que desejo é-me.
Nunca mais nos vimos.
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Seurat, "Le Dormeur" |
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